Publicado originalmente em: https://www.linkedin.com/pulse/ixbr-atinge-40-tbps-e-convida-%C3%A0-reflex%C3%A3o-sobre-o-futuro-moreiras-nv8hf
Um marco histórico: o Brasil no topo da infraestrutura global da Internet
Em abril de 2025, o Brasil atingiu um marco notável no cenário da infraestrutura da Internet: o IX.br, iniciativa nacional de Pontos de Troca de Tráfego (IXPs), alcançou um pico de tráfego agregado de 40 terabits por segundo (Tbps). Esse número, por si só, já é impressionante. Mas o dado mais emblemático é que o IX.br São Paulo, sozinho, ultrapassou 25 Tbps de tráfego de pico.
O IX.br não é um único ponto de troca de tráfego Internet, mas sim um sistema distribuído que hoje reúne 38 IXPs em diferentes cidades brasileiras. Essa estrutura atende diretamente 4.255 Sistemas Autônomos (ASNs), formando o maior ecossistema de interconexão da América Latina e, em número de participantes, do mundo. A presença física se viabiliza por meio de 183 PIX (Pontos de Interligação ao IX), pontos de presença do IX.br instalados em datacenters parceiros, além de mais de 1.000 CIX (Canais para o IX), canais operados por terceiros que permitem conexões indiretas à infraestrutura do IX.br.
Para dimensionar esse feito, vale compará-lo com os principais IXPs globais:
- DE-CIX (Global): Em abril de 2025, o conjunto de IXPs operados pelo DE-CIX, presente em mais de 50 localidades, atingiu 25 Tbps de tráfego agregado.
- AMS-IX (Amsterdã): Apresentou recentemente um pico de tráfego de aproximadamente 14 Tbps.
- LINX (Londres): Registra picos da ordem de 10 Tbps.
- CABASE (Argentina): Atinge cerca de 4 Tbps de tráfego agregado.
- PIT Chile (Chile): Reporta picos em torno de 15 Tbps.
Esses números evidenciam que o IX.br São Paulo é hoje o maior ponto de troca de tráfego do mundo em volume individual, e o IX.br como projeto representa o maior sistema de IXPs sob uma única gestão (*). Esse resultado é fruto de um modelo técnico e institucional singular — descentralizado, neutro, multissetorial e amplamente acessível — que será detalhado nos tópicos seguintes.
O que é o IX.br e por que ele funciona
O IX.br, sigla para Brasil Internet Exchange, é uma iniciativa do NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR), braço executivo do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Foi criado para promover a interconexão direta entre Sistemas Autônomos (AS), permitindo que os dados trafeguem localmente, de forma mais eficiente, econômica e com menor latência. Na prática, o IX.br permite que provedores de conteúdo, provedores de conexão, empresas, órgãos públicos e instituições acadêmicas troquem tráfego entre si diretamente, sem depender de trânsito internacional ou de intermediários.
Sua infraestrutura é, por projeto, descentralizada. Os PIX estão instalados em datacenters parceiros e abrigam os switches e roteadores que viabilizam a interligação dos participantes. O NIC.br é responsável pela operação técnica, incluindo instalação de equipamentos, configuração, suporte e manutenção contínua. Cada IXP pode contar com vários PIX interligados dentro de uma cidade ou região metropolitana, formando uma malha que permite a qualquer participante se conectar por um PIX e alcançar todos os demais. Em São Paulo, por exemplo, 32 PIX estão interligados por fibra óptica, formando uma única estrutura lógica de troca de tráfego.
Complementam esse modelo mais de 1.000 CIX, canais de acesso operados por terceiros, como ISPs regionais ou datacenters locais. Eles permitem que participantes se interliguem indiretamente por meio de portas compartilhadas, o que democratiza o acesso e viabiliza a entrada de pequenos provedores. Se o IX.br fosse um IXP comercial, provavelmente chamaria esse modelo de “revenda de porta”.
O modelo financeiro também é chave: o IX.br é mantido principalmente com recursos do registro de domínios .br, o que permite que a participação seja gratuita na maioria das localidades, com exceção de São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza, onde há cobrança por porta desde 2017. Esse fator ajuda a explicar por que o IX.br reúne mais de 4.200 Sistemas Autônomos, mais do que qualquer outro IXP no mundo.
Outro pilar é a neutralidade. O IX.br é sem fins lucrativos, não é controlado por operadoras e não vende trânsito IP. Ele apenas oferece a infraestrutura para que as redes se interliguem, as decisões de peering cabem aos participantes. Isso garante isonomia, confiança e estabilidade.
Esse modelo, construído ao longo de duas décadas, é fruto direto de um arranjo de governança que equilibra interesses públicos e privados, técnicos e sociais, tema do próximo item.
Como funciona a governança da Internet no Brasil
A governança da Internet no Brasil é amplamente reconhecida como exemplo bem-sucedido do modelo multissetorial (multistakeholder). Trata-se de um arranjo institucional construído nas últimas três décadas, baseado na ideia de que a Internet é diversa e estratégica demais para ser controlada por apenas um setor. No centro desse modelo está o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), criado em 1995 por Portaria Interministerial dos Ministérios das Comunicações e da Ciência e Tecnologia.
O CGI.br é composto por 21 integrantes, com representação equilibrada entre governo e sociedade civil. São 12 membros não governamentais (de empresas, academia, terceiro setor e comunidade técnica) e 9 governamentais, indicados por órgãos públicos. As decisões são tomadas de forma colegiada, preferencialmente por consenso, com ampla publicidade das atas e resoluções.
Ao CGI.br cabe definir as diretrizes estratégicas para o uso da Internet no país. Ele coordena as iniciativas executadas pelo NIC.br, entidade sem fins lucrativos que atua como seu braço operacional e técnico.
O NIC.br realiza o registro de domínios “.br” (via Registro.br), opera o IX.br, distribui endereços IP (em cooperação com o LACNIC), mantém projetos como o NTP.br, promove a adoção de IPv6 e DNSSEC, organiza cursos técnicos, eventos, publicações e atua em diversas outras frentes de interesse público.
Esse modelo reúne características de forma inovadora: autonomia técnica e financeira, com legitimidade social. A governança da Internet no Brasil não é subordinada a uma agência reguladora, a um ministério ou a empresas. Ela se organiza de forma colaborativa, plural, usando recursos privados advindos do registro de nomes de domínios, e voltada ao interesse público, mesmo quando dialoga com os interesses legítimos de diferentes setores.
Foi dentro desse modelo que o IX.br se desenvolveu. E é por isso que ele pode operar em larga escala, com neutralidade, custos baixos e ampla capilaridade. Esse equilíbrio, no entanto, está sendo reavaliado.
O modelo brasileiro de telecomunicações e a separação legal
Um dos fundamentos técnicos e jurídicos que sustentam a Internet no Brasil e que viabilizam projetos como o IX.br é a separação legal entre serviços de telecomunicações e serviços de valor adicionado (SVA). Essa distinção está prevista na Lei Geral de Telecomunicações (Lei nº 9.472/1997), na Norma nº 4/1995 e foi reiterada em pareceres da própria Anatel ao longo dos anos.
Na prática, isso significa que a Internet não é tratada como um meio de telecomunicação tradicional, mas como um serviço que utiliza a infraestrutura de telecomunicações sem se confundir com ela. Ou seja, cabos, fibras, torres e enlaces são parte da camada física das telecomunicações; já os serviços da Internet, como protocolos, aplicações, endereços IP, roteadores, tabela BGP, e conteúdo pertencem a uma camada distinta, lógica e funcional.
Esse modelo permitiu que milhares de provedores regionais atuassem com liberdade e baixo custo regulatório, desde que operando em redes próprias ou em infraestrutura licenciada de terceiros. Isso favoreceu a diversidade, a competição e a interiorização da conectividade, características que também fortalecem o IX.br.
Por outro lado, os serviços de telecomunicações, como telefonia, rádio, TV e transporte físico de dados, são regulados diretamente pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que concede outorgas, define metas, fiscaliza contratos e cobra tributos específicos.
Essa divisão de competências funcionou bem por mais de duas décadas, permitindo que a Internet evoluísse com agilidade, autonomia e inovação, paralelamente às redes legadas de telecom. Hoje, no entanto, o contexto político e regulatório reacende o debate sobre como esse equilíbrio deve ser mantido ou adaptado.
A Anatel tem sinalizado a intenção de revogar a Norma nº 4/1995. Embora a agência não tenha afirmado explicitamente que a Internet deva ser reclassificada como serviço de telecomunicações, essa possibilidade poderia passar a existir legalmente, a depender da interpretação. Caso isso ocorra, a consequência seria a ampliação do escopo regulatório sobre Sistemas Autônomos, IXPs, provedores e até sobre aplicações, com possíveis exigências como licenciamento, taxas, obrigações, metas de universalização e penalidades administrativas.
No campo legislativo, o Projeto de Lei nº 4557/2024 propõe uma reestruturação abrangente da governança da Internet no país. Um de seus pontos centrais é a proposta de subordinar o Comitê Gestor da Internet (CGI.br) à Anatel, atribuindo à agência a responsabilidade pelas decisões estratégicas, operacionais e normativas relacionadas à Internet. Embora o projeto reconheça formalmente a existência do CGI.br, ele o reconfigura como um órgão consultivo, sem poder deliberativo, dentro da estrutura da agência. Se aprovado, isso teria impacto direto sobre a atuação do NIC.br e o CGI.br deixaria de ser um espaço de governança multissetorial e passaria a funcionar sob lógica regulatória tradicional.
Essas movimentações não representam apenas um ajuste técnico, mas um reposicionamento institucional mais amplo. Trata-se de repensar o papel do Estado na governança da Internet: se ele deve se dar por meio de regulação unificada e centralizada, ou de forma compartilhada e multissetorial, como tem sido até agora.
Devemos manter e reforçar o que funciona
As propostas de alterar a governança da Internet no Brasil não precisam necessariamente ser vistas como ameaças diretas. No entanto, elas representam uma inflexão significativa: um possível afastamento de um modelo que tem funcionado, em direção a uma lógica centralizadora com menor participação da sociedade.
Não é coincidência que, sob o modelo atual, o Brasil tenha construído a maior estrutura de interconexão do mundo. O IX.br opera em 38 localidades, conecta mais de 4.200 Sistemas Autônomos, mantém 183 PIX em datacenters parceiros e conta com mais de 1.000 CIX espalhados pelo território nacional. O ponto de troca de tráfego de São Paulo sozinho ultrapassa 25 Tbps, mais do que qualquer outro IXP do mundo.
Esses resultados não ocorreram apesar da governança multissetorial. Eles são consequência direta dela: da autonomia técnica do NIC.br, do financiamento privado baseado no .br, da neutralidade, da descentralização e da ampla participação dos setores da sociedade envolvidos e afetados.
O ecossistema criado em torno do CGI.br, do NIC.br, do IX.br, não beneficia apenas técnicos, provedores de Internet ou aplicações: ele tem impactos diretos na vida do cidadão comum. A expansão dos IXPs e a vitalidade do ecossistema de milhares de provedores regionais, em grande parte viabilizados pela leveza regulatória e pela infraestrutura pública e neutra do IX.br, têm sido determinantes para a inclusão digital no Brasil, especialmente em regiões antes negligenciadas pelas grandes operadoras. A redução da latência, a melhora na qualidade do acesso, a presença local de conteúdos e serviços, e a competitividade no mercado de banda larga são frutos diretos dessa arquitetura. Além disso, o modelo tem favorecido a interiorização do tráfego, diminuído a dependência de infraestrutura internacional e criado as bases para uma Internet mais acessível, resiliente e soberana.
Substituir esse arranjo por um modelo centrado em uma agência reguladora da área de telecomunicações, historicamente voltada à concessão de espectro, à fiscalização de serviços de voz e à supervisão de contratos, traz riscos. Seria como tentar regular um organismo vivo com as ferramentas de um relógio mecânico: pode até parecer funcional, mas perderia o dinamismo e a adaptabilidade que definem a Internet.
Além disso, há uma preocupação democrática legítima. O CGI.br é composto por representantes de diversos setores, todos com voz e voto. Submetê-lo a uma estrutura hierárquica comprometeria a pluralidade e a legitimidade do processo de governança.
A Internet brasileira não precisa ser desmontada nem reinventada. Precisa ser preservada e fortalecida, com base no que já se mostrou eficaz. O marco dos 40 Tbps do IX.br não é apenas um dado técnico. É um sinal claro de que o modelo que adotamos funciona. E agora é o momento de defendê-lo com inteligência, responsabilidade e diálogo.
Declaração de responsabilidade (Disclaimer)
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do autor, feitas em caráter pessoal, como cidadão, engenheiro e especialista na área. Elas não representam, necessariamente, a posição oficial de meus empregadores atuais ou anteriores, nem de qualquer instituição ou organização com a qual mantenha vínculo profissional, acadêmico ou institucional. O conteúdo deste artigo é informativo e opinativo, e não deve ser interpretado como manifestação institucional ou orientação jurídica, regulatória ou técnica oficial.
Antonio Marcos Moreiras.
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(*) PS (23/02/25): De fato, como foi apontado em um comentário da versão em inglês deste artigo, pode não ser totalmente verdade que o IX.br é o maior conjunto de IXPs sob uma mesma gestão. A página pública de estatísticas do Equinix IX — https://ix.equinix.com/home/locations-and-traffic/#traffic — mostra que o tráfego agregado deles já atingiu o pico de 43,5 Tbps. Ou seja, eles superaram o IX.br em termos de tráfego máximo observado. No entanto, se olharmos para os valores de tráfego dos últimos dias, o IX.br parece estar na frente, com uma taxa agregada atual mais alta (o gráfico da Equinix mostra um máximo de 37,2 Tbps). Vale destacar também: o IX.br ainda lidera globalmente no número de sistemas autônomos participantes!