Pedágio de rede e Neutralidade da Rede, há relação?

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Pedágio de rede e Neutralidade da Rede, há relação?






Recentemente o Capítulo Brasileiro da Internet Society e o Instituto de Tecnologia e Sociedade propuseram de forma conjunta uma Carta Aberta em defesa da Neutralidade da Rede. Essa carta foi motivada por declarações do presidente da Anatel, contra a Neutralidade da Rede [1][2], dadas durante um importante evento técnico internacional, o MWC 2024 em Barcelona [3] e está disponível no site sobre a proposta do “Pedágio na Internet”, ou “Pedágio de Rede”, a qual seus defensores chamam de “Fair Share”. Essa carta, por sua vez, motivou este artigo, que escrevo com o objetivo de contribuir para o diálogo sobre a questão.






A Neutralidade da Rede, vale dizer, é um princípio chave para a Internet, defendido entre os Princípios para a Governança e Uso da Internet no Brasil, do Comitê Gestor da Internet [4] e protegido hoje pelo Marco Civil da Internet (lei 12.965, de 23 de abril de 2014) [5].






Mas o que o presidente da Anatel disse, de tão preocupante? O senhor Carlos Baigorri afirmou, durante um painel em forma de debate entre reguladores de telecomunicações, que entende a Neutralidade de Rede como um privilégio para algumas empresas, que estariam supostamente impedidas pelo princípio da Neutralidade de discutir mudanças nas condições comerciais nas relações entre elas e as operadoras de telecomunicações. Foram, segundo as fontes já citadas, declarações como: “A neutralidade de rede, como a concebo, é mais um privilégio comercial criado para corporações americanas, sem um impacto significativo na inovação ou competitividade”, ou ainda: “Há alguns anos tivemos essa discussão de neutralidade de rede e naquele tempo eu dizia, e digo isso de novo agora, que estávamos sendo enganados, porque parecia para mim que a neutralidade se dizia como algo para defender a democracia e a liberdade de expressão, mas no final do dia estavam apenas criando privilégios comerciais para algumas empresas específicas”.






Um artigo publicado em setembro de 2023, por Alexandre Freire, conselheiro diretor da Anatel, e Ricardo Campos, advogado, no site Teletime, com o título: “Fair share e neutralidade de rede: qual a relação?” [6], me ajudou a contextualizar as declarações do senhor Carlos Baigorri e a preocupação da ISOC Brasil e do ITS. Esse artigo discute e defende a proposta de “Fair Share”. Os autores argumentam que a proposta não viola a Neutralidade da Rede, sugerindo uma revisão do debate para separar a regulação das relações entre provedores de conteúdo e empresas de telecomunicações daquela entre telecomunicações e usuários finais.






No ponto específico de que o Pedágio de Rede não viola a Neutralidade da Rede, são apresentados, de fato, bons argumentos, com os quais concordo!  Os assuntos, como pretendo argumentar ao longo deste artigo, me parecem completamente transversais. Contudo, isso nem de longe serve como justificativa razoável para apoiar a proposta de Pedágio de Rede ou “Fair Share”, defendida pelos autores. Há bons argumentos contra ela, alguns dos quais espero também apresentar aqui. Os argumentos de Alexandre Freire e Ricardo campos serviram para jogar alguma luz sobre as declarações do presidente da Anatel. Ficou mais claro que ao menos alguns profissionais da Agência acreditam que há uma forte relação entre a Neutralidade da Rede e a impossibilidade de se instituir o Pedágio de Rede. Isso explica o presidente da entidade ter atacado a primeira, para defender o segundo. O fato das críticas à Neutralidade estarem vinculadas à defesa do Pedágio de Rede é preocupante em vários níveis.






O primeiro é o já explicitado na própria Carta Aberta: há duas tomadas de subsídio que abordam o assunto, feitas pela Anatel, uma é a de número 13 [7], já encerrada, e outra a de número 26 [8], ainda aberta, até maio deste ano. A Carta chama atenção para o fato de que ainda não foi apresentada uma Análise de Impacto Regulatório sobre o tema. Mas vale considerar que não foi, até onde é do meu conhecimento, apresentada sequer uma justificativa coerente, baseada em estudos, que explique a inclusão do tema do Pedágio de Rede na própria tomada de subsídios. Ou seja, cogita-se uma regulação e pede-se um levantamento de subsídios para supostamente resolver um problema que sequer é apresentado, está definido, ou foi constatado. A preocupação levantada pela Carta, em minha interpretação, reside em que mesmo tendo em vista as consultas ainda em aberto e a falta de subsídios e análises, aparentemente o presidente da entidade reguladora já tem opinião formada e a expressa em declarações dadas em um evento internacional. Podem estas declarações ser entendidas como um posicionamento oficial do regulador, visto que foram expressadas por seu presidente, representando a entidade em um debate? Quero crer que não, caso contrário para que serviriam então as tomadas de subsídio e discussões a respeito? A Anatel poderia já ter uma proposta de regulação favorável ao Pedágio de Rede, independentemente da opinião dos atores envolvidos e da análise de impacto? São questões em aberto que expressam uma preocupação que compartilho, razão de ter assinado a Carta!






Um segundo ponto de preocupação, este não apresentado na Carta, mas que vale a pena discutir, é que nem Neutralidade da Rede, nem Pedágio de Rede, são realmente temas que estão dentro das competências regulatórias da Anatel. Cabe à Agência, sim, regular as interações entre os prestadores de SVA e as operadoras de telecomunicações. Por exemplo, garantir que diferentes prestadores de SVA, como provedores de acesso à Internet ou provedores de conteúdo, possam contratar serviços de telecomunicações, tais quais enlaces L2 para interligar diferentes datacenters, em condições isonômicas. Mas não cabe a ela regular as relações entre os diferentes prestadores de SVA, entre as diferentes organizações que compõem e operam a Internet, diretamente, quando não há serviços de telecomunicações diretamente envolvidos, mas apenas uso subjacente dos mesmos. Se uma dessas empresas que opera a Internet como SVA oferece também serviços de telecomunicações, o fato do que é SVA não estar no escopo regulatório da Anatel não muda. Muita gente pensa que o conceito de SVA se refere apenas a serviços adicionais, que funcionam sobre a Internet, mas isso está completamente errado. A referência para o que é SVA, a agregação de valor, é o serviço de telecomunicações e não a Internet. A Norma 4/1995 define claramente que o SVA se constitui, entre outros elementos: “dos equipamentos necessários aos processos de roteamento, armazenamento e encaminhamento de informações, e dos software e hardware necessários para o provedor implementar os protocolos da Internet e gerenciar e administrar o serviço”. Quando se fala de Internet, de camada IP, que inclui protocolos de roteamento como BGP, transmissão de pacotes, políticas de peering, de todo o hardware e software relacionado, como roteadores, DNS, protocolos e aplicações, e das relações entre as empresas e outras organizações operando essas tecnologias, tudo isso é SVA, está definido como SVA na norma 4, e foge claramente do escopo regulatório da Anatel. Para reforçar: conforme definido na LGT e na Norma 4/1995, a Internet em si e basicamente tudo que envolve sua operação é um SVA. Se uma discussão sobre regulação dos SVAs no tocante ao Pedágio de Rede é ou não pertinente, isso pode até ser debatido. Mas dentro do ordenamento jurídico e regulatório brasileiro, considerando a LGT e a Norma 4/95, me parece que essa discussão não cabe à Anatel. A Internet tem se desenvolvido de forma saudável no país e o eficiente trabalho da Anatel como reguladora das telecomunicações tem que ser reconhecido por seu mérito, tendo grandemente contribuído para constituir um ambiente propício a isso. Por exemplo, a criação do regulamento do SCM e posteriormente da possibilidade de dispensa do SCM para os pequenos operadores, foi um dos fatores que viabilizou o surgimento e a operação de muitos pequenos provedores de Internet, responsáveis em levar a Internet para milhares de assinantes. Contudo, há que se lembrar que a regulação deve ser aplicada pontualmente apenas onde é realmente necessária, onde há problemas ou desequilíbrios a resolver. A proposta de Pedágio de Rede tem o risco de criar uma regulação intrusiva, sendo obstáculo para a inovação.






Para entender melhor toda essa questão, vamos olhar com mais atenção para a Neutralidade da Rede, para alguns conceitos sobre como a Internet se organiza, e depois para o Pedágio de Rede. Assim será possível considerar com mais elementos se há ou não relação entre ambos, e os riscos de abolir o primeiro ou instituir o segundo.






A Neutralidade da Rede






A Neutralidade de Rede é uma propriedade da Internet que emergiu de importantes princípios técnicos, princípios de arquitetura de rede global, como o da simplicidade do núcleo da rede. Segundo esse princípio, o núcleo apenas deve se encarregar de encaminhar os pacotes para os destinos, onde de fato reside a inteligência, ou seja, as aplicações, se mantendo assim simples e escalável. A Neutralidade tem sua origem também no princípio da comunicação fim a fim, que garante que qualquer dispositivo pode se comunicar com qualquer outro dispositivo na rede global. Ela, portanto, esteve sempre presente na Internet e historicamente tem garantido que ela seja um ambiente amplamente propício à inovação, ao surgimento de novos negócios, e tem sido um dos alicerces da rede global. Levando em consideração os dois princípios de arquitetura citados anteriormente qualquer nova aplicação, qualquer novo protocolo de rede, qualquer inovação, desde que use pacotes IP, funcionará na rede, sem necessidade de acordos prévios, permissões ou taxas. Pacotes IP simplesmente são tratados da mesma forma. Os roteadores ao longo do caminho adquirem informações sobre a topologia da Internet via protocolo BGP e, ao receber um pacote qualquer, verificam o endereço de destino, escolhem a melhor alternativa de conexão para onde encaminhá-lo com base nas informações previamente adquiridas, e o encaminham. É simples assim. Funciona. Escala.






O termo “Neutralidade da Rede” foi criado por Tim Wu em 2003. Ele percebeu como essas características de simplicidade do núcleo e comunicação fim a fim, que até então eram respeitadas por razões meramente técnicas, na verdade eram importantes também sob outros pontos de vista. Em um contexto em que possivelmente alguns provedores de Internet, por interesses comerciais, poderiam ter a intenção de criar alguns tipos de discriminação no encaminhamento dos pacotes, para impedir certos tipos de serviços e o tráfego de dados a eles associados, ficou patente a necessidade de manter a neutralidade no tratamento dos diferentes pacotes de dados. Tim Wu introduziu o conceito de Neutralidade da Rede em seu artigo “Network Neutrality, Broadband Discrimination”. O artigo discutiu a importância de uma Internet aberta e como a discriminação no tratamento de dados poderia afetar a inovação e a livre concorrência.






O Marco Civil da Internet define a Neutralidade de Rede da seguinte forma: “Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.”






A Neutralidade da Rede impede priorizações ou bloqueios de conteúdos específicos. Sem ela, pode-se imaginar que haveria ofertas de conexão à Internet discriminatórias. Por exemplo, pacotes de acesso que permitiriam o funcionamento de apenas alguns tipos de aplicações, como e-mails e mensagens de texto, e outros que permitiriam streamings e videoconferências. A Internet seria fatiada, dividida, deixaria de ser uma só.






A Internet é uma rede de redes que cooperam entre si.






A Internet é uma rede de redes. Cerca de 80 mil organizações globalmente participam da Tabela de Rotas da Internet, por meio do protocolo BGP. Essas organizações têm que se interligar física e logicamente, a fim de formar uma rede global única.  Essa interligação acontece sem regulação ou imposição, mas por acordos, comerciais ou de colaboração, entre essas diversas redes, conforme seus interesses técnicos e comerciais. As ligações físicas entre as redes podem acontecer por enlaces diretos ou com o auxílio de Internet Exchanges, que são infraestruturas com a finalidade específica de interligar várias redes, numa topologia estrela, em uma determinada localidade geográfica. As relações lógicas entre essas redes podem envolver o fornecimento de trânsito IP, onde uma rede oferece um caminho para alcançar toda a Internet para outra, ou podem ser estabelecidas por meio de peering, onde normalmente as redes oferecem caminhos para acessar seus próprios usuários e serviços, mutuamente. O mais comum é que relações de fornecimento de trânsito IP sejam comerciais, enquanto relações de peering sejam colaborativas e sem pagamentos de uma parte à outra, incluindo relações de peering multilaterais, que acontecem normalmente em Internet Exchanges.






É comum, por exemplo, que um provedor de acesso à Internet contrate comercialmente um ou mais provedores de trânsito IP,  para que o tráfego flua de e para o restante da Internet. Ao mesmo tempo ele faz acordos de peering com outros provedores locais, ou regionais, e outros tipos de redes, para troca de tráfego, normalmente usando um ou mais Internet Exchanges como base para essa interligação e acordos, o que otimiza o fluxo de dados de um ponto de vista técnico e normalmente incorre em economia de recursos financeiros também.






As relações entre os Sistemas Autônomos (AS, em inglês, Autonomous Systems), as redes que compõem a Internet, não interferem na Neutralidade de Rede. Os AS podem se interligar diretamente ou não. Podem pagar um ao outro ou não. Podem transportar os pacotes de seus vizinhos para outras redes, ou receber apenas aqueles com destinos locais. Nada disso interfere na Neutralidade da Rede. Quando falamos das relações entre diferentes AS, falamos na verdade de acordos de peering, de políticas de roteamento, de engenharia de tráfego, de contratação de trânsito IP, de redundância, de participação em Internet Exchanges, etc. Isso tudo tem relação com a organização da infraestrutura da Internet e a otimização da ligação de um AS com todos os outros. Decisões tomadas sobre essas questões interferem no custo, na velocidade, na capacidade, na resiliência, nos tempos de transmissão, na qualidade percebida pelos usuários de uma determinada rede. Isso tudo é decidido livremente com base na estratégia técnica e comercial de cada Sistema Autônomo na Rede Global e é negociado livremente com os demais. Nada disso interfere diretamente no tratamento isonômico dos pacotes, ou seja, nada disso interfere no princípio da Neutralidade da Rede.






A operação da Internet e os serviços de telecomunicações






A Internet não se confunde com as redes de telecomunicações e a base dessa afirmação não é apenas a Norma 4/95 do Ministério das Comunicações, mas sim o próprio funcionamento da rede global. Ela é composta por milhares de redes independentes que se interligam. As telecomunicações são um dos pilares tecnológicos sobre os quais a Internet se sustenta, mas estão longe de ser o único, ou mesmo o principal. Uma definição completa da Internet também deve englobar os recursos que podem ser alcançados por meio dessas redes, bem como a comunidade de pessoas que utilizam e desenvolvem essas redes e recursos. Isso inclui os softwares que proveem a inteligência nas extremidades da rede, e infraestruturas como Datacenters e Internet Exchanges.






Nem Sistemas Autônomos, nem Internet Exchanges, são ou operam serviços ou redes de  telecomunicações, de forma que não estão sujeitos à regulação da Anatel. Contudo as redes de telecomunicações, operadas por vezes pelas mesmas empresas que operam os Sistemas Autônomos, e por vezes por empresas diferentes destas, têm papel importante, fundamental, na interligação dos diversos Sistemas Autônomos, para que estes formem uma Internet globalmente única. Os serviços de telecomunicações são utilizados muitas vezes para conectar as diferentes plataformas dos Sistemas Autônomos entre si, diretamente, ou por meio de Pontos de Troca de Tráfego, em particular oferecendo transporte de dados entre diferentes localizações geográficas. Quando os Sistemas Autônomos já operam suas plataformas dentro de um mesmo ambiente interno, como um datacenter, os serviços de telecomunicações não são necessários para essa interligação.






CAPs e CDNs






Importa entender aqui também o papel atual das Redes de Distribuição de Conteúdo, ou CDNs, na Internet. Para alguns tipos de serviços e conteúdos hoje é inviável que funcionem a partir de uma infraestrutura centralizada. Ao longo do tempo foram desenvolvidas redes, que se constituem de servidores que funcionam basicamente como replicadores, espelhos, de conteúdos e, por vezes, de partes de aplicações, na Internet. Esses servidores normalmente estão distribuídos em datacenters comerciais, contratados pelas empresas responsáveis pela CDN, ou em datacenters de provedores de Internet, por meio de acordos. Algumas CDNs prestam serviços a empresas terceiras, como é o caso da Akamai, da Cloudflare, e de outras. Qualquer empresa que tenha conteúdos ou serviços na Internet pode contratá-las para distribuí-los. Outras CDNs foram criadas por empresas para suportar os serviços delas próprias. Google, Facebook, Netflix e Globo têm suas próprias CDNs e são bons exemplos.






As Redes de Distribuição de Conteúdo são Sistemas Autônomos e parte integrante da infraestrutura atual da Internet, e também não se constituem serviços de telecomunicações, contudo são  responsáveis pela distribuição de 70 a 80% de todo volume de dados da rede global atualmente. Não fosse a infraestrutura de Internet construída pelas CDNs, as redes de telecomunicações não seriam capazes de suportar o volume de tráfego hoje na Internet. As CDNs, por manterem cópias locais dos conteúdos mais acessados, geram um efeito multiplicador de banda. O conteúdo é copiado uma só vez para um servidor local, mas acessado por múltiplos usuários próximos a ele. As empresas responsáveis pelas principais CDNs fizeram e fazem também investimentos em redes de longa distância, como cabos submarinos, sendo as principais responsáveis pelas infraestruturas mais modernas e recentes.






No contexto de telecomunicações normalmente essas redes são referidas como OTTs (over the top). Isso faz sentido do ponto de vista dos operadores dos serviços de telecomunicações. Desse ponto de vista a própria Internet pode ser considerada um serviço OTT, pois embora os serviços de telecomunicações não sejam o único pilar sobre o qual a Internet se sustenta, quando olhamos para a Internet do ponto de vista de um operador de telecomunicações, esta é apenas um SVA operando sobre a sua rede. Contudo, no contexto da Internet, o conceito de OTT não faz sentido algum. Os serviços de distribuição de vídeos, os mais diversos tipos de outros serviços e mesmo as redes onde estão os usuários desses serviços se misturam e se confundem, se misturando e confundindo também com a própria Internet e sua infraestrutura. Uma nomenclatura mais apropriada para nomear de forma geral as empresas responsáveis pelas CDNs e pelas diversas plataformas de serviços e conteúdos na Internet, como Redes Sociais, Comércio Eletrônico, serviços do mercado financeiro, etc, é a de Provedores de Conteúdo e Aplicações, ou CAPs, da sigla em inglês (Content and Application Providers). Podemos usar, então, o termo CAP para falar da Globo, do Google, da Meta, do Uber, da B2W, do Bradesco, etc, nesse contexto.






Pedágio de Rede ou “Fair Share”






Esclarecido um pouco do funcionamento da Internet e das relações estabelecidas entre CAPs, ISPs, Internet Exchanges, e outros players na rede, vamos tentar entender no que consiste, afinal, a proposta do Pedágio de Rede.






Atualmente é comum que CDNs e outros tipos de CAPs façam acordos de peering com Provedores de Internet, onde não há pagamentos de uma parte para a outra. Ou os ISPs buscam os conteúdos das CDNs nos datacenters comerciais onde elas estão, por meio de interligações privadas denominadas PNI, sigla em inglês para Interligação Privada de Redes (Private Network Interconnect). Ou CDNs e ISPs se interligam via Internet Exchanges, onde ambos estão presentes. Ou CDNs instalam infraestruturas dentro dos datacenters dos ISPs, para fornecer seus conteúdos e serviços a partir dali. Em nenhuma das três modalidades é comum que haja pagamentos de uma parte para a outra. Normalmente ambos os lados consideram essa uma relação ganha-ganha. As CDNs e outros CAPs conseguem alcançar seus usuários ou clientes com qualidade e baixo custo e os ISPs têm acesso a custo muito baixo a uma grande parcela do tráfego que entregam para os seus usuários, pelo que são remunerados por eles.






Contudo, algumas poucas operadoras de telecomunicações, operando também como ISPs, não estão satisfeitas com a situação e acreditam que deveriam ser remuneradas pelas CDNs e outros CAPs. Não tendo sido capazes de resolver o conflito via livre negociação têm proposto aos reguladores de telecomunicações que intervenham e obriguem as CDNs e CAPs a pagar pelo peering.






Essas operadoras justificam a proposta dizendo que estão com dificuldades para fazer investimentos em infraestrutura. Mas é interessante lembrar que boa parte do investimento em telecomunicações está sendo poupado pelo enorme investimento na construção de CDNs. Além do que é comum que CDNs e CAPs invistam em datacenters, cabos submarinos, desenvolvimento de hardware e software, e outros elementos que, tal qual os serviços de telecomunicações, são também pilares sobre os quais se sustenta a Internet. Os defensores do Pedágio de Rede também argumentam que a margem de lucro dos CAPs em geral é muito maior do que a dos operadores de redes. Buscam, então, obter uma parcela maior de ganhos com a Internet por meio de financiamento cruzado. É como se fabricantes de tijolos pedissem ao governo para criar uma regulação obrigando as construtoras e imobiliárias a repassarem parte dos seus lucros a eles, afinal o investimento em tijolos seria essencial para a saúde do mercado imobiliário. O Pedágio de Rede tem sido considerado uma proposta deletéria, perigosa, ruim, por quase todos os envolvidos na situação: CAPs, ISPs, CDNs, Internet Exchanges, e várias organizações que representam todos os tipos de usuários da Internet, como é o caso da Internet Society. Afinal, é uma proposta que parece nascer de uma premissa não comprovada e tenta resolver um problema que não existe, com consequências imprevisíveis. Ou consequências nem tão imprevisíveis, talvez. Ela foi adotada na Coréia do Sul e o efeito foi a debandada do país de CDNs e CAPs, que passaram a trocar tráfego com os ISPs coreanos apenas em países vizinhos, aumentando os custos para todos e prejudicando a qualidade e experiência para os usuários da Internet no país.






A Neutralidade da Rede e o Pedágio de Rede têm relação entre si, afinal?






Pedágio de Rede e Neutralidade da Rede são ambos temas delicados e vitais para o funcionamento da Internet. A modificação na situação atual carece de cuidadosa ponderação, dada a possibilidade de consequências negativas. A infraestrutura atual da Internet é um testemunho de um sistema que funciona de maneira equilibrada e estável, demonstrando robustez ao suportar crescimento contínuo, inovação e a emergência de novas tecnologias, ideias e modelos de negócio. Alterações imprudentes, especialmente na forma de regulações mal projetadas ou intervenções econômicas como a adoção do Pedágio de Rede, ou desrespeito ao princípio de Neutralidade da Rede, podem desequilibrar esse sistema, sendo potencialmente deletérias para todos.






Embora o próprio Capítulo brasileiro da Internet Society e o ITS tenham apresentado o Marco Civil e a Neutralidade da Rede como um dos argumentos contra o Pedágio na Rede, pessoalmente considero essa mistura entre diferentes conceitos mais um ponto de preocupação, reforçado pelas declarações do presidente da Anatel. Misturar os debates sobre a Neutralidade da Rede e o Pedágio de Rede pode ser prejudicial, pois confunde dois assuntos distintos, que demandam considerações separadas. A Neutralidade da Rede trata da isonomia no tratamento dos dados que trafegam na Internet, fundamental para preservar a inovação e mesmo a liberdade de expressão. Já o Pedágio de Rede aborda questões econômicas e contratuais envolvendo a interligação de diferentes entidades corporativas, ou seja, das diferentes redes que compõem a Internet, os Sistemas Autônomos. Essas questões hoje são bem resolvidas com a livre negociação entre as partes e uma intervenção regulatória pode ter consequências indesejáveis e deletérias, como já aconteceu no caso da Coréia do Sul.






Adicionalmente, há uma tendência perigosa de confundir a necessidade de regular os Provedores de Conteúdo e Aplicações (CAPs) em termos dos conteúdos e serviços que oferecem, com a discussão sobre a regulação da relação, no nível de infraestrutura de Internet, entre CAPs e ISPs ou CAPs e operadores de telecomunicações. Tentativas anteriores de regular os CAPs, focadas nos conteúdos e serviços, mostraram que essa abordagem pode levar a debates acalorados e a disputas sobre a censura e a liberdade na Internet. Essas discussões são também distintas da questão de como a infraestrutura da Internet deve ser financiada e gerenciada, e misturá-las pode obscurecer as questões em jogo e impedir a resolução eficaz de ambas.






Portanto, é crucial manter os debates separados e claros. Misturar as discussões sobre Neutralidade da Rede com o Pedágio de Rede, ou confundir a regulação de conteúdo com a gestão de infraestrutura, pode levar a confusões e a adoção de políticas desnecessárias e mal concebidas, que prejudicam tanto a liberdade e inovação na Internet quanto a equidade e sustentabilidade econômica do seu ecossistema. Dessa forma, um diálogo informado e objetivo é essencial para abordar cada uma dessas questões em seus próprios méritos, garantindo que a Internet continue a ser um recurso aberto, inovador e acessível para todos.






Referências:






[1] https://www.pedagionaInternet.com.br/post/carta-aberta-em-defesa-da-neutralidade-de-rede






[2] https://teletime.com.br/27/02/2024/baigorri-neutralidade-de-rede-virou-desculpa-para-privilegios-comerciais/






[3] https://www.mwcbarcelona.com/






[4] https://principios.cgi.br/






[5] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm






[6] https://teletime.com.br/14/09/2023/fair-share-e-neutralidade-de-rede-qual-a-relacao/






[7] https://apps.anatel.gov.br/ParticipaAnatel/VisualizarTextoConsulta.aspx?TelaDeOrigem=2&ConsultaId=10120






[8] https://apps.anatel.gov.br/ParticipaAnatel/VisualizarTextoConsulta.aspx?TelaDeOrigem=2&ConsultaId=20202












8 de abril de 2024






Antonio M. Moreiras.






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