Publicado originalmente em: https://www.linkedin.com/pulse/peeringdb-e-internet-como-ela-realmente-funciona-redes-moreiras-r7dkf
Comunicação e cooperação entre redes: a base da Internet
A Internet não é uma entidade única, centralizada, controlada por uma organização. Ela é, por definição, um sistema distribuído composto por milhares de redes independentes. Cada uma dessas redes, conhecidas como Sistemas Autônomos (AS), é operada por uma entidade distinta: pode ser um provedor de acesso à Internet, um Provedor de Aplicações e Conteúdos (CAP), um provedor de trânsito ou transporte, uma rede de entrega de conteúdo (CDN), uma empresa, uma universidade ou um órgão público.
Essas redes se comunicam usando protocolos padronizados, principalmente o BGP (Border Gateway Protocol), que permite anunciar e descobrir rotas entre redes. Atualmente, existem aproximadamente 80 mil AS operando globalmente e cerca de 9 mil no Brasil. Não existe uma autoridade central que diga como essas redes devem se comunicar. Elas decidem, de forma independente, com quais outras redes querem estabelecer comunicação, em quais pontos e sob quais condições.
Ferramentas e práticas surgiram da necessidade concreta de permitir que essas redes se encontrem, troquem informações e coordenem aspectos operacionais da comunicação entre si. Essas soluções não são impostas de cima para baixo, mas sim desenvolvidas pela própria comunidade técnica da Internet. Entre elas, uma se tornou essencial para viabilizar essa organização de forma prática, transparente e escalável: o PeeringDB, que é o principal assunto deste artigo.
Peering e sua importância para o desempenho das redes
Para que a comunicação entre redes seja eficaz, ela precisa ocorrer da forma mais direta, estável e econômica possível. É nesse contexto que surge o conceito de peering, que é o acordo entre duas redes para trocarem tráfego diretamente entre si, sem a intermediação de uma rede de trânsito paga. Esse modelo de comunicação direta costuma ocorrer de forma gratuita ou com custos operacionais compartilhados, dependendo das condições acordadas entre as partes. O peering também pode ser chamado de troca de tráfego.
No peering, duas ou mais redes estabelecem uma comunicação física e sessões BGP entre si, anunciando seus blocos de endereços IP e os de seus clientes diretos umas às outras. As redes estabelecem assim uma comunicação direta. Os anúncios não são repassados para a Internet global, nem os anúncios provenientes dela são repassados à rede parceira, ou redes parceiras, de forma que não há “trânsito” de dados de ou para a Internet global, apenas comunicação local entre as redes participantes do acordo.
O peering melhora o desempenho ao encurtar o caminho que os pacotes percorrem, reduzindo a latência e o número de saltos. Também aumenta a previsibilidade do tráfego e evita gargalos comuns em links de trânsito. Do ponto de vista econômico, ele contribui para a redução de custos com banda contratada de terceiros.
Além disso, o peering é uma prática que sustenta a arquitetura distribuída da Internet, favorecendo a diversidade de caminhos e evitando dependência excessiva de grandes operadoras globais. A sua adoção, especialmente quando estimulada por pontos de troca de tráfego (IXP), contribui diretamente para a eficiência da comunicação entre redes em âmbito local, regional e global.
O desafio da organização descentralizada
A comunicação entre redes na Internet não acontece por acaso. É preciso que cada rede decida com quem deseja trocar tráfego, em quais locais essa troca ocorrerá e sob quais condições técnicas e administrativas. Em um ecossistema com dezenas de milhares de AS espalhados pelo mundo, encontrar e manter relacionamentos técnicos confiáveis não é trivial.
Ao contrário de modelos centralizados, nos quais uma autoridade define como as partes devem se comunicar, a Internet funciona com base em decisões voluntárias, bilaterais ou multilaterais, entre as redes.
Essa coordenação ocorre por meio de diferentes mecanismos criados e mantidos pela própria comunidade técnica. Um dos principais são os pontos de troca de tráfego, ou IXP, que atuam como plataformas neutras onde diversas redes se encontram fisicamente para estabelecer sessões de peering. Além de prover infraestrutura, os IXP frequentemente incentivam o relacionamento entre os participantes e facilitam a visibilidade mútua entre redes.
Outro componente importante são os encontros presenciais e fóruns regionais e globais de peering. Eventos como o LAC Peering Forum, o IX Fórum e o GTER no Brasil, o Global Peering Forum reúnem operadores de redes para compartilhar experiências, debater boas práticas e, principalmente, negociar acordos de peering. Esses ambientes presenciais fortalecem vínculos e aceleram o estabelecimento de novas comunicações diretas entre redes.
A existência desses mecanismos mostra que, mesmo sem uma autoridade central, o ecossistema da Internet dispõe de estruturas eficazes de cooperação e coordenação para facilitar o peering e manter a comunicação fluindo com eficiência. Isso impõe um desafio: como documentar e organizar essas relações de forma acessível, auditável e funcional, sem abrir mão da descentralização?
Foi nesse contexto que a comunidade técnica da Internet criou mecanismos colaborativos para permitir que redes encontrem parceiros, publiquem suas características técnicas e comerciais, e mantenham atualizadas suas informações de comunicação. Um desses mecanismos tornou-se fundamental para a interligação entre redes e é hoje uma das ferramentas mais usadas e respeitadas do ecossistema: o PeeringDB.
O que é o PeeringDB e como ele surgiu
O PeeringDB é um banco de dados público, gratuito e mantido pela própria comunidade técnica da Internet. Nele, Sistemas Autônomos (AS), pontos de troca de tráfego (IXP) e data centers (facilities) publicam informações relevantes para facilitar o estabelecimento de peering e a expansão de suas comunicações.
O projeto teve início em 2004, inicialmente mantido por voluntários e com uso restrito a alguns grupos da comunidade de redes. Rapidamente, no entanto, ele se mostrou uma ferramenta essencial para operações cotidianas de redes em todo o mundo. Em 2016, foi formalizado como uma organização sem fins lucrativos, com estrutura de governança transparente e participativa, voltada exclusivamente à manutenção e aprimoramento da plataforma.
Desde então, o PeeringDB evoluiu para se tornar uma das mais importantes referências globais em informações sobre comunicação entre redes. Sua adesão massiva e seu modelo de atualização distribuída o tornam um exemplo claro de como a Internet se organiza de forma colaborativa, eficaz e responsável.
Como funciona o PeeringDB
O PeeringDB é uma base de dados colaborativa. A maior parte das informações cadastradas na plataforma é fornecida diretamente pelas próprias redes (AS), que mantêm seus perfis atualizados de forma voluntária. Isso inclui, por exemplo, a declaração de presença em IXP (pontos de troca de tráfego) e facilities (data centers). São as próprias redes que informam onde estão presentes, com que capacidades técnicas e sob quais políticas de peering operam.
O PeeringDB organiza esses dados em três categorias principais:
- Networks (redes): cada AS publica seu perfil contendo número de sistema autônomo (ASN), política de peering (aberta, seletiva ou restrita), volume estimado de tráfego, prefixos anunciados, IPs de peering, contatos técnicos e administrativos, e a lista de IXPs e data centers onde mantém presença.
- IXP (pontos de troca de tráfego): os operadores dos IXP mantêm seus perfis com dados institucionais como nome, localização, contatos, política de participação e facilidades oferecidas. No entanto, a lista de redes participantes não é editada por eles diretamente. Essa lista é construída automaticamente com base nas declarações feitas pelas redes que informam estar presentes no IXP.
- Facilities (data centers): seguem lógica semelhante. O operador da instalação publica dados sobre o local, mas são as redes que declaram sua presença física ali. Dessa forma, o número de redes listadas em cada data center reflete as autodeclarações feitas por quem realmente está operando na instalação.
Essas informações podem ser acessadas por meio da interface web do PeeringDB ou consultadas de forma programática via uma API pública, amplamente utilizada para automatizar processos em ferramentas de gestão de rede e plataformas de IXPs.
Essa estrutura distribuída e autorregulada torna o PeeringDB uma ferramenta eficiente, confiável e amplamente utilizada para planejamento de interconexões, estabelecimento de novos acordos de peering e aumento da visibilidade no ecossistema global da Internet.
Quem usa e por que: benefícios para cada perfil
O PeeringDB é amplamente utilizado por diferentes atores do ecossistema da Internet, desde operadoras regionais até grandes plataformas globais de conteúdo. Para as redes, especialmente provedores de acesso, CDN, CAP (Content and Application Providers), redes corporativas e acadêmicas, ele é uma ferramenta essencial para planejar presença em novos pontos de troca de tráfego ou data centers, identificar potenciais parceiros de peering e publicar informações que aumentam sua visibilidade e facilitam contatos técnicos. Essas redes mantêm seus perfis atualizados, o que permite que outras redes consultem dados operacionais e estratégicos, como políticas de peering, volume de tráfego e locais de atuação.
Além disso, muitas redes automatizam suas configurações de roteamento com base nas informações disponíveis no PeeringDB. É comum, por exemplo, que ferramentas internas ou scripts configurem automaticamente sessões BGP para peering bilateral ou multilateral, consultando diretamente a API da plataforma. Isso reduz a chance de erros manuais, acelera o provisionamento e garante consistência com as políticas publicadas pelos participantes.
Pontos de troca de tráfego (IXP) também se beneficiam diretamente da plataforma, já que ela permite mostrar sua relevância técnica e atrair novas redes. As informações inseridas pelos próprios participantes ajudam a construir um retrato confiável do IXP, e facilitam processos de integração com ferramentas como o IXP Manager, além de simplificar o acesso a contatos e dados técnicos das redes participantes. Muitos IXP utilizam também os dados do PeeringDB para gerar filtros de roteamento, como no caso de ASN marcados como “não anunciar via IXP” (do not announce), evitando a propagação indevida de rotas.
Da mesma forma, operadores de data centers usam o PeeringDB para divulgar sua infraestrutura, as redes presentes em suas instalações e os serviços que oferecem. Isso contribui para atrair novos clientes interessados em ambientes com alta densidade de interligação e acesso facilitado à Internet Exchanges e outras redes.
Por fim, a comunidade técnica como um todo, especialmente desenvolvedores de sistemas de automação e equipes de engenharia de redes, utiliza intensamente a API pública do PeeringDB para alimentar ferramentas de roteamento, geração de filtros, painéis operacionais e scripts de provisionamento. Isso mostra que o valor do PeeringDB vai muito além de sua interface web: ele é parte ativa do funcionamento cotidiano da Internet moderna.
A escala do PeeringDB hoje
O PeeringDB atingiu uma escala impressionante desde sua criação, consolidando-se como a principal base de dados global para informações sobre comunicação entre redes. Atualmente, a plataforma reúne perfis de mais de 36 mil Sistemas Autônomos (AS), mais de 800 pontos de troca de tráfego (IXP) e cerca de 2 mil data centers (facilities) em todos os continentes. Esses números, em constante crescimento, refletem a confiança da comunidade técnica no modelo aberto e colaborativo que sustenta a ferramenta.
Entre os participantes, estão os maiores provedores de conteúdo do mundo, provedores de aplicações, CDN, operadoras Tier 1, redes acadêmicas e científicas, governos, empresas regionais e locais, além de pequenos provedores e iniciativas comunitárias. A adesão é voluntária, mas praticamente universal entre redes que mantêm presença técnica e operacional relevante na Internet. O PeeringDB tornou-se tão presente no cotidiano da engenharia de redes que muitas decisões técnicas e comerciais são tomadas com base nas informações que ele fornece.
A força do PeeringDB está justamente na sua escala e no modelo distribuído de atualização. Ao permitir que cada entidade seja responsável por suas próprias informações, a plataforma consegue manter dados atualizados e confiáveis sem depender de uma autoridade central. Isso reforça o papel do PeeringDB para ajudar a manter toda a infraestrutura da Internet global.
Um modelo que funciona e que não depende de controle central
O sucesso do PeeringDB é um exemplo claro de como a Internet se organiza por meio da colaboração técnica, da confiança mútua e da adoção de boas práticas, sem depender de estruturas hierárquicas, ou autoritárias. Trata-se de um modelo distribuído, mantido pela própria comunidade de redes, no qual cada entidade é responsável por suas informações e por sua postura em relação à comunicação com os demais participantes do ecossistema.
Em vez de uma autoridade central que determine regras ou imponha processos, o que existe é um conjunto de ferramentas, como o próprio PeeringDB, que permitem a organização eficiente de acordos entre redes, com base em dados públicos, padronizados e auditáveis. A confiança é construída pela transparência: qualquer rede pode consultar os dados, verificar a presença e a política de peering de outra, e tomar decisões técnicas com base nessas informações.
Entender em profundidade esse tipo de arranjo é especialmente importante em um momento em que surgem propostas de regulação, que buscam influenciar ou controlar os fluxos de tráfego e as relações entre redes, muitas vezes sem compreender a lógica técnica e operacional que sustenta a Internet. Por exemplo as propostas em torno do fair share, pedágio de rede e suas variantes, procurando regular de alguma forma relações de peering, e que estão na pauta de muitas entidades reguladoras de telecomunicações globalmente. O PeeringDB, em conjunto com Internet Exchanges, fóruns técnicos e outras ferramentas e processos abertos, se provam mecanismos eficazes de coordenação e de estímulo à comunicação eficiente entre redes. Mecanismos que funcionam e são construídos de baixo para cima, por quem opera a rede no dia a dia.
Ao invés de impor barreiras ou exigências externas que possam prejudicar a flexibilidade e a eficiência do sistema, o melhor caminho é fortalecer iniciativas como o PeeringDB e os diferentes Peering Fóruns que acontecem globalmente, que provam, na prática, que a cooperação técnica pode escalar e sustentar uma rede mundial funcional, resiliente e aberta.
Descentralização, cooperação, transparência e autonomia técnica.
O PeeringDB é, ao mesmo tempo, simples e essencial. Ele não é uma plataforma sofisticada, cheia de camadas ou intermediários. É uma base de dados pública, construída pela própria comunidade, que organiza de forma prática e confiável as informações necessárias para que as redes possam se comunicar melhor. E isso, em uma Internet composta por dezenas de milhares de Sistemas Autônomos, é absolutamente fundamental.
Se você opera uma rede, seja um provedor de acesso, uma CDN, um CAP, uma rede corporativa, um IXP ou um data center, manter um perfil atualizado no PeeringDB é mais do que uma boa prática. É uma forma de participar ativamente do ecossistema técnico da Internet, contribuindo para que ela funcione de forma mais eficiente, previsível e aberta. É também uma forma de tornar sua rede mais visível, acessível e preparada para novas oportunidades de comunicação direta com outros participantes.
O PeeringDB é uma das engrenagens invisíveis que sustentam a Internet como a conhecemos. Ele funciona porque é confiável, porque é útil, e porque respeita princípios que fizeram a Internet dar certo até aqui: descentralização, cooperação, transparência e autonomia técnica.
Fortalecer esse tipo de ferramenta é, em última análise, fortalecer a própria Internet.
Saiba mais
- https://www.peeringdb.com/
- https://docs.peeringdb.com/
- https://old.ix.br/doc/PeeringDB.pdf
- https://old.ix.br/doc/PeeringDB_Cadastro_de_Facilities.pdf
- https://www.youtube.com/watch?v=9EIBgF6okWs
- https://www.youtube.com/watch?v=IFdRaaRRwqM
- https://www.youtube.com/watch?v=WgACfvJ-HFY